Acidente

Eu tava sentado na mesa. Assim, só sentado. Caneta em uma mão, cabeça apoiada na outra, olhando pra porta. O marrom da porta não significava nada. Mas eu pensava nisso. Não vinha nenhuma ideia à cabeça. Tocou o telefone. A mão da caneta atendeu, deixou ela cair na mesa. Daquele jeito que pinga uma vez com cada ponta, sabe? O telefone na orelha e a voz na cabeça. Um acidente? Ok. Quando? Uhum. O papai? Uhum. Uhum. Morreu? Entendi. Uhum. Ok. Amanhã? Ah sim. Não encontraram né? Não né? De ninguém? Ok. Uhum. Velório só. Tá. Tá bom. Tchau. Meu pai morreu. Um avião sofreu acidente. Ele tava nele. Eu não sabia. Era com a amante. Isso eu também não sabia. Acho que agora eu tenho que fazer alguma coisa, né? Organizar. É, eu acho que as pessoas fazem isso. Organizam. Alguma coisa. O enterro. Mas não tem corpo. O velório. Ok, só o velório. Tem que avisar todo mundo. Todo mundo não, só algumas pessoas. Eu nem sei quantos anos ele tinha. Alguém vai me perguntar isso né? Vai. Ele era jovem. Jovem demais pra morrer assim — como se alguém fosse velho o suficiente pra morrer desse jeito. Mas ele já tava quase doente. Ele bebia muito. E fumava. E batia na mulher. As vezes. Só quando seu time perdia. Isso acontece todos os dias. Pessoas perdendo pessoas. O que elas sentem quando isso acontece? E que horas a gente chora? É pra chorar, não é? Ok, vou chorar agora.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

História

Divã do Monstro